Os últimos dias têm sido agitados. Primeiro o voluntariado em Castanheira de Pera – os meus medos aqui -, depois o choque da partida de um grande mestre – aqui -, um início da dieta dos 7 dias que não durou mais do que 1 dia – aqui – e pelo meio uma série de coisas a tratar. Para quem não sabe, saí do trabalho onde estava já há 10 anos – o único trabalho a sério que conheci, embora já tenha feito de tudo um pouco a nível profissional – e estou numa fase burocrática, mas entusiasmante, entre projectos, para arrancar em breve com um projecto pessoal ligado ao que mais gosto de fazer.
O voluntariado em Castanheira de Pera foi muito mais fácil do que imaginava. Foi um cansaço tão bom, que nem sequer chegou a cansar verdadeiramente. Deu vontade de todos os dias ficar só mais um dia. E todos os meus medos foram infundados.
Conheci em Castanheira de Pera pessoas incríveis, incluindo um grupo de estudantes universitárias, voluntárias como eu, que me fizeram reflectir sobre o quanto eu fui totó com a idade delas, por achar que todos os que não partilhavam os mesmos interesses do que que eu – na altura exclusivamente boémios e intelectuais – eram totós. Estas miúdas têm vidas normais (são divertidas, alegres, com amigos, bem-dispostas e com uma vida social activa), mas têm interesses mais importantes e profundos do que a mera diversão, como eu tinha: busca interior, espiritualidade e ajudar o próximo. Elas dedicam parte das férias grandes a fazer voluntariado e em campos de férias com crianças especiais, como animadoras. Eu nunca tive amigos assim, confesso. Mas elas têm também tempo para fazerem as coisas que eu fazia, como ir de férias com amigos, sair à noite, namorar. A diferença é que não se dedicam exclusivamente a isso (que no fundo é nada), como eu me dediquei tantos e tantos anos. Fiquei envergonhada pela vida completamente inútil que levei quando tinha a idade delas. Só pensava em sair com amigos, em divertir-me, beber uns copos e aproveitar o momento, nada mais. Para além da surpresa que foi ao saber que são Católicas praticantes e que a maioria dos seus amigos também. Levou-me a concluir que conheci as pessoas erradas e não vi as certas que, provavelmente, me rodeavam. Há jovens com mais profundidade do que eu achava, felizmente, pelos vistos eu é que não estava atenta (“diz-me com quem andas, dir-te-hei quem és“). Felizmente acordei, lentamente, ao longo dos últimos 8 anos, mas fui acordando. E nunca é tarde para despertar. Um dia hei-de escrever sobre isto aqui no blog, sobre a pessoa que eu fui, a pessoa que sou agora e a pessoa que quero ser.
As condições em Castanheira de Pera são mínimas, mas são óptimas. Dormi numa antiga escola, numa camarata mista, suja e velha, numa cama de metal sei lá com quantos anos, com cobertores usados sabe-se lá por quantas pessoas. Dormi mesmo bem, com a sensação de dever cumprido, relaxada, sem medos. Com a mesma sensação de partilha do ano em que estudei num colégio interno, em que dormíamos todas juntas numa camarata, por vezes tão fria no inverno, mas sempre tão felizes e alegres por estarmos umas com as outras.
A comida, na cantina dos Bombeiros, obviamente que não é vegetariana. Mas é boa, feita com amor pela Escola de Hotelaria. Enquanto lá estive, comi sempre arroz com salada e, nos dias em que não foi canja, também sopa. Eu nunca como carne. E só em situações em que mais vale comer peixe do que comer mal, é que o faço. E nunca me sabe bem. Deixei de comer peixe já nem sei há quanto tempo, mas não há muito, talvez há 1 ou 2 anos… Num dos dias, cheguei à cantina com zero expectativas para almoçar, vi o que era a refeição e imediatamente gritei (juro que gritei): “é massa com atum!!!!”. Com uma felicidade incrível, o que fez com que várias pessoas se rissem do meu sorriso escancarado. “É massa com atum!!! É massa com atum!!!”… Deve ter sido uma das comidas mais deliciosas que comi em toda a minha vida. Sem proteínas há já alguns dias, com uma alimentação pobre e com um grande esforço físico, já tinha dado por mim a olhar para latas de salsichas, a pensar “até que comia uma…”. Logo eu que sinto aversão à carne. Mas por outro lado, não sou fundamentalista cega e acho que é tudo uma questão de adaptabilidade e de fazer as melhores escolhas possíveis em cada situação. Se estivesse lá mais dias, meses até, seria mais benéfico, pelo menos de vez em quando, comer carne branca, do que comer todos os dias arroz branco com salada.
O trabalho que fiz em Castanheira de Pera foi muito bom. Eu gosto de ficar na logística, prefiro um papel secundário e físico do que um papel principal. No primeiro dia estive no armazém da roupa (com uma quantidade incrível roupa que dava para vestir Portugal inteiro e ainda sobrar). Nos dias seguintes estive no armazém da comida, a organizar as doações e a fazer os kits alimentares. É duro fisicamente, especialmente porque não estou habituada a estar tantas horas de pé, nem a andar tantos quilómetros e a carregar pesos, mas é um cansaço que sabe bem, parece que nem chega a cansar. Sempre ouvi dizer que quem faz trabalho intelectual deve fazer nos tempos livres trabalhos físicos. E eu sinto falta desse trabalho físico que cansa o corpo e dá oportunidade à mente para descansar.
Perguntaram-me muito pelas historias, quando cheguei. A gente de Castanheira de Pera já sofria antes. Não é de agora. Há muita miséria, histórias que nem vale a pena contar e que devem ser semelhantes às histórias das gentes de muitas aldeias e vilas, especialmente do interior. Agora com os incêndios, há mais gente que precisa de ajuda. Ajuda física – em termos de reconstrução de casas, limpeza dos terrenos e das casas, comida, ração para animais, roupa, detergentes e produtos de higiene, basicamente de tudo -, mas também daquela ajuda de dar uma palavra amiga e de conversar. Morreu gente a toda a gente de lá. As pessoas saem de casa e deparam-se todos os dias com a serra ardida. Parece um cemitério. É uma paisagem negra, muito triste. Não dá para fazer por esquecer. A natureza morta está lá para relembrar, a cada instante, que aquela tragédia aconteceu. As pessoas querem contar como foi, onde estavam, o que viveram. Têm o coração a transbordar de dor, precisam de contar, especialmente contar a quem é de fora, contar como foi. E são gratas por tanta gente que vem de fora ajudar. Não só em Castanheira de Pera, claro, mas também em Pedrogrão Grande e em todas as outras localidades que foram fustigadas pelo fogo.
Quando penso nesta gente, lembro-me especialmente dos olhos azuis de uma senhora para aí com uns 90 anos, que tem 10 pessoas a seu cargo. Filhos, noras, netos,… Muitos alcoólicos – como há tantos nas terras onde há pouco para entreter a mente e muito de mau para a ocupar. Os seus familiares, provavelmente distraídos com a miséria em que vivem, não repararam que esta mulher já não nova como foi. Não repararam que já não tem forças e precisa de ajuda. Esta senhora dos olhos azuis, enrugada como a minha avó, pequenina, magra, toda de preto, veio a pé da aldeia onde mora pedir bens alimentares. Todos os dias cozinha, lava e passa a ferro para aquela gente toda, sem ajudas. E o marido, que também não vai para novo, tem problemas de saúde. As mulheres são quase sempre mais rijas, não desistem e ninguém repara nelas. Até ao dia em que vão embora. A miséria desta senhora não foi provocada pelos incêndios. A casa dela não sofreu com o fogo. O fogo, que trouxe dor a tanta gente, tem também um lado positivo: pode ter-lhe trazido um alivio. A senhora dos olhos azuis tem agora quem lhe leve as mercearias que precisa a casa e possivelmente foi sinalizada pela assistência social para que a ajuda não termine por aqui. Estive sentada ao lado dela, numa cadeira, à espera. Estivemos as duas caladas muito tempo, num silêncio não constrangedor. E eu disse-lhe, a sorrir, “tem uns olhos tão bonitos…”. E ela riu-se, envergonhada, mas sem pudores, sem disfarçar os dentes que já não tem.
Por mim tinha ficado “só mais um dia“, muitos mais dias. Ajudei-me mais a mim do que ajudei os outros. Só aqueles minutos de espera, ao lado da senhora dos olhos azuis, foram preciosos. E todos os kits alimentares que fiz, que alimentaram mais a minha alma do que a boca daquela gente. Mas são precisas muitas mais mãos… Não só doações – aliás, roupa, por exemplo, já não é mesmo preciso. São precisas mãos para ajudar na logística e nas limpezas e na reconstrução e nas coisas mais pequeninas que nem nos passa pela cabeça que são precisas numa situação como esta.
Gostava de voltar. E se não voltar para Castanheira de Pera, vou certamente voltar para outro projecto que precise de mim.
[Quem quiser ajudar, pode contactar os Médicos do Mundo pelo 967 880 472.]
E ja agora e pra te dizer que estou na grecia.
Bom trabalho
Ola.
O meu nome e Luis David e nasci Na aldeia da moita em cast. Pera e a casa dos meus pais e a primeira da moita do lado esquerdo.
Fui bombeiro lÁ 23 anOs mas agora estou na reserva.
Trabalho como tu mas em televisao e naquela semana fatidica fui ajudar no que sei fazer melhOr e como conhEcedor da area ainda melhOr.
A tua acao de voluntariado e as demais foram um alento para muitas das gentes daqueles pequenos lugares que so falam E desabafam cOm,(A peixeira de 15 em 15 dias o carTeiro a padeira etc…)
E para muitos deles perder tudo era menOs importante do que ter alguem com quem falar e Saberem que alguem tem neles ,,,atencao,,, que os entendem que os prezam e mimam,., e verdade que o vosso empenho e de louvar e de sustentar mais iniCiativas como a VOssa,,,mas os mesmOs idOsos que so expressaram as magOas, o sofrimento a desolacao a incredualidade da impotencia a revolta E principalmente a Solidao nao vos vai voltar a Ver a sentir o vosso carinho a mao amiga e o beijinho naquela face com muitas rugas de anOs De sabedoria.
O que faz ser feliz com o pouco que TEm.
Olá Luís! Obrigada pelas tuas palavras verdadeiras. É mesmo isso. É preciso mais amor pelo próximo. Bjs!
Ob e continua assim
E se tiveres um trabalho que gostes, nunca mais teras que trabalhar.
Bjinho
Mesmo! <3 Obrigada. Bjs!
P.S. Não conheço muito da grécia, mas o que conheci gostei!
Di.. Adoro MESmo a pessoa que és.. Adorei o teu texto. VIERAM-me as lágrimas aos olhos…
Vi que DESCREVES o QUe já foste como se FOSSE algo mau.. Mas não é. Provavelmente TIVESTE um estilo de vida que a maioria teve na ADOLESCÊNCIA, mas algures no teu caminho mudaste..tudo o que viveste só te ajudou a ser a pessoa que és hoje!! Gosto mesmo da tua forma de escrever… sempre tão verdadeira e fiel à pessoa que és. És MESmo uma pessoa linda!!! ( por dentro e por fora)
Aninha, tu vês-me com os teus olhos. E por isso só me podes ver bonita. <3 <3 Gosto de ti, o melhor do I Love Bio (já sabes). <3 Beijinho