Na Índia, o sofrimento é visível a cada virar de esquina. Não é como cá, que está camuflado. Ou por outra: na Índia nós – os de cá -, sofremos a cada virar de esquina com aquilo que vemos. O que não quer necessariamente dizer que do outro lado haja sofrimento. Mas nós sofremos…
Começa com os animais pelas rua. Nós não estamos habituados a ver animais nas ruas. Animais que comem no lixo, que se deitam no meio da estrada a dormir um sono profundo, sujos, com pulgas e carraças, alguns com sarna.
Passa, depois, pelas pessoas que dormem na rua, que estão sujas, de cabelos emaranhados, crianças com bebés ao colo, que pedem. Não são pobres, aos nossos olhos são miseráveis. Nós não estamos habituados a ver gente assim pelas ruas.
E passa ainda pelos bebés e crianças pequenas, na rua, nus da cintura para baixo, para fazerem xixi e cocó livremente. Nós não achamos que é por isso. Mas é.
Passa também pelas pessoas com deficiências físicas profundas que se arrastam pelas ruas, que nos seguem e que nos olham nos olhos, com um riso que nos amedronta. Nós não estamos habituados a ver gente sem partes do corpo a arrastar-se pelas ruas, muito menos a olhar-nos nos olhos. Não sabemos o que fazer, sentimos medo, dor e embaraço, até. Viramos a cara, muitas vezes.
E termina – sem nunca terminar, na verdade – na sujidade, nas casas exíguas e degradadas, nas construções umas em cima das outras que parecem todas iguais, no lixo pelo chão, nos esgotos a céu aberto, nas pessoas de pele escura, queimada pelo sol, algumas sem dentes ou com os dentes estragados, que se riem de boca aberta sem pudor, de sandálias velhas nos pés, com roupas limpas, mas de fraca qualidade, a fazerem trabalhos que consideramos baixos. Nós não estamos habituados a ver gente assim.
Perguntam-me muitas vezes “e os animais na Índia, como consegues?” ou “e a pobreza, como lidas com isso?”. Já chorei muitas vezes, em muitos virar de esquinas, com muitas situações que me revolveram o estômago e o coração, não nego: uma vaca a sufocar por ter comido lixo a mais, um cão a quem cortaram uma parte da cabeça a vaguear, famílias de baixo da ponte com bebés, crianças e velhos, um senhor com o rosto desfigurado, talvez por um ácido, colado à janela do meu táxi, um mar de deficientes a arrastarem-se pelo chão em frente a um local sagrado, uns sem pernas, uns sem braços, outros quase só tronco e cabeça, uma cabra com as patas partidas,… Tantas histórias.
Já me perguntei tantas outras vezes se aquilo é realmente sofrimento, ou seja, se o outro está a sofrer como eu acho que está, ou se sou eu que sofro com essas visões. Na maioria dos casos concluí que sou eu que sofro a ver realidades que por cá estão camufladas: os deficientes físicos deslocam-se em cadeiras de rodas ou estão longe dos olhares; os animais são recolhidos por instituições e vivem vidas de prisão, em jaulas ou então são abatidos; outros morrem nos matadouros, alguns em trabalhos forçados, outros nos transportes de animais vivos; as vacas sofrem horrores na indústria dos lacticínios; os animais domésticos ficam fechados em apartamentos à espera que o dono chegue ao final do dia; as pessoas vestem-se bem, têm todos os dentes imaculados, carros bons, trabalhos de responsabilidade e casas enormes, mas não se riem com os dentes todos e, quando chegam a casa, quando ninguém está a ver choram, sozinhas; os velhos estão em lares à espera das visitas de fim-de-semana; os bebés dormem longe dos país, sozinhos, em quartos lindos, vestidos com roupas maravilhosas e usam fraldas com químicos, um sem número de produtos de higiene que não são nada bons para a saúde e que provocam até peles atópicas, que se tratam com outros cremes, mas que cheiram tão bem…!
Também já me questionei se, já que considero que pessoas e animais estão a sofrer tanto por lá e sendo eu tão bom coração, se não trocaria com eles, se dessa forma fosse possível aliviar-lhes o sofrimento. E a resposta foi, invariavelmente “gostava muito, mas… não”.
E já pensei também na lei do Karma, na qual acredito: então, vamos supor, se amputaram a pessoa X para ela pedir nas ruas e lhe causaram um grande sofrimento (visto pelos meus olhos), essa pessoa, na vida anterior, poderá ter sido horrível e provocado um enorme sofrimento a outros… Certo?
Há uns tempos contaram-me uma história que era mais ou menos assim: alguém daqui dos nossos lados foi para a Índia ajudar os leprosos. Quando estava lá, a fazer voluntariado, uma mulher leprosa, sem partes do corpo que tinham caído, disse-lhe: “o que estás aqui a fazer?. Ao que ele respondeu: “vim ajudar!”. “Então vai embora para casa e ajuda-te a ti: nós sofremos menos que tu.” – respondeu a mulher, sorridente.
O sofrimento é apenas interior e enquanto não nos mentalizarmos que o sofrimento não depende das circunstâncias exteriores, vamos continuar a sofrer. Cenários que nos parecem catastróficos (ex. amputar uma perna, lepra e caírem-nos partes do corpo, morrem todos os nossos familiares, ficarmos a dormir na rua, sem casa), podem não gerar tanto sofrimento, como alguns cenários que a nós nos parecem banais. De certeza que todos já nos deparamos com juízos como “não percebo como é que ele ficou tão em baixo com aquilo”. Depende exclusivamente da nossa maleabilidade e capacidade de adaptação à realidade. Pessoas com grande capacidade de adaptação à realidade, como a maioria dos Indianos de classes baixas, podem ter uma condição exterior considerada por nós como má, mas podem muito bem ser bastante mais felizes do que nós.
É [também ] por isso a Índia nos faz tão bem: se observarmos com atenção para lá daquilo que nos faz chorar e virar a cara, conseguimos perceber várias coisas:
- Que a vida é sofrimento;
- Que o sofrimento depende só de nós e que não está relacionado com nada que nos possa acontecer;
- Como devemos estar gratos por tudo o que temos e como devemos tentar ter menos, educar a nossa mente e estar mais em contacto com o sofrimento, para, quando as circunstâncias exteriores se alterarem – porque vão-se alterar! – sabermos lidar com elas.
Isto é o início, na minha perspectiva. Um início que tento seguir tantas vezes, quantas aquelas em que me esqueço (como a história que contei no Instagram de quando paguei um quarto de hotel a um motorista para ele não dormir no carro, só porque na nossa perspectiva é horrível alguém não ter cama onde dormir). A busca maior, no entanto, deverá ser pelo caminho para cessar o ciclo de renascimentos, caso contrário vamos estar sempre numa roda que gira sem parar, sem sabermos o que nos aguarda na vida de amanhã.
Já agora, quem quiser vir à Índia comigo, uma Índia muito suave, a Índia Sul, a Macro Viagens tem programas com inscrições a decorrer para Janeiro 2019 (aqui) e Fevereiro 2019 (aqui).
Ir à Índia, pelo menos uma vez na vida, deveria fazer parte do programa nacional de educação. 🙂
Boa tarde, o seu post é muito forte, lido mal COM o sofrimento ALHEIo, dos animais então…por essas e outras tornei-me vegetariana… não sei, ir a um país e deparar-me comuns realidade tão cruel…não acho que por aqui as coisas sejam camufladas, ok há hipocrisia em muita coisa, mas repare, mil vezes ter o meu cão num apartamento com todo o conforto na sua cama longe do frio e do calor, sozinho sim, muitas vezes, MAS é recompensado com grandes passeios, mil vezes isso doque vê-LOS acorrentados em muitas senhoras vivendas, ou como disse, a vaguear pelas ruas cheios de FOME e de DO, entregues á sua sorte e por vezes á maldade humana…a Índia nunca me me despertou interesse, as mulheres são tratadas como coisas sexuais, é uma cultura que honestamente me assusta…os direitos humanos estão muito aquém…aqui pelo menos tentamos CIVILIZAR-nos… tentamos apesar de tudo.
Admiro a sua coragem no entanto, a coragem de observar a maldade, a crueldade, o sofrimento, ver de facto o mundo real, e na maioria das vezes nada puder fazer…admiro!
Wow…
Parabéns.
Fiquei “colado” neste post. Ainda não fui à Índia mas desejo há anos e sei que irá acontecer brevemente com a macro.
No entanto tenho viajado e trabalhado por outras “Índias”. África por exemplo…
Aliás ao lER este texto, fechei os olhos um segundo e voltei aos bairros de Luanda, ou ao interior profundo DE MOÇAMBIQUE.
Curioso que também defendo que uma visita a ÁFRICA (tal como Índia) devia fazer parte Do percurso académico de todos nós, a bem da educação nacional.
Parabéns Diana.
Quero muito ir um dia a África. Só conheço Marrocos, que não é aquela África 🙂